A «carta aos que não crêem» do Papa Francisco
O jornal italiano “La Repubblica”
publicou quarta-feira, 11, uma longa carta do Papa Francisco na qual ele
escreve aos que não crêem e lhes assegura que “Deus perdoa a quem obedece a sua
própria consciência”.
A carta de quatro páginas é uma
resposta ao fundador do jornal, Eugenio Scalfari, que em vários artigos dirigia
ao Pontífice algumas perguntas em nome daquele que como ele “não acreditam e
não buscam a Deus”.
Eis a íntegra da carta:
|Ilustríssimo Doutor Scalfari, é com viva
cordialidade que, embora somente em grandes linhas, gostaria de tentar com esta
minha, responder à carta que, das páginas do ‘La Repubblica’, o senhor quis me
endereçar em 7 de julho com uma série de reflexões pessoais suas, que depois as
enriqueceu nas páginas do mesmo jornal, no dia 7 de agosto.
Agradeço-lhe, antes de tudo, pela atenção com que
quis ler a Encíclica Lumen fidei. Ela, de fato, na intenção do meu amado
predecessor, Bento XVI, que a concebeu e em grande medida a redigiu, e do qual,
com gratidão, eu a herdei, é dirigida não somente para confirmar na fé em Jesus
Cristo aqueles que nela já se reconhecem, mas também para suscitar um diálogo
sincero e rigoroso com aqueles que, como o senhor, se definem como “um
não crente há muitos anos interessado e fascinado pela pregação de Jesus de
Nazaré”.
Parece-me, portanto, ser positivo não só para
nós, individualmente, mas também para a sociedade em que vivemos determo-nos
para dialogar sobre uma realidade tão importante como a fé, que diz respeito à
pregação e à figura de Jesus. Penso, particularmente, que existam duas
circunstâncias que tornam hoje necessário e precioso esse diálogo.
Isso, aliás, constitui, como se sabe, um dos
objetivos principais do Concílio Vaticano II, desejado por João XXIII, e do
ministério dos Papas que, cada um com a sua sensibilidade e o seu aporte, desde
então até hoje caminharam no sulco traçado pelo Concílio. A primeira
circunstância – como referida nas páginas iniciais da Encíclica – deriva do
fato que, ao longo dos séculos da modernidade, assistiu-se a um paradoxo:
a fé cristã, cuja novidade e incidência sobre a vida do homem, desde o início,
foi expressa precisamente através do símbolo da luz, foi muitas vezes rotulada
como a escuridão da superstição que se opõe à luz da razão. Assim,
entre a Igreja e a cultura de inspiração cristã, por um lado, e a cultura
moderna com marca iluminista, de outro, chegou-se à incomunicabilidade. Chegou
agora o tempo, e o Vaticano II inaugurou a este propósito a estação, de um diálogo
aberto e sem preconceitos que reabra as portas para um sério e fecundo
encontro.
A segunda circunstância, para quem procura ser
fiel ao dom de seguir Jesus na luz da fé, deriva do fato de que esse diálogo
não é um acessório secundário da existência do crente: é, ao invés disto, uma
expressão íntima e indispensável dela. Permita-me de citar ao senhor, a
propósito, uma afirmação a meu ver muito importante da Encíclica: como a
verdade testemunhada pela fé é a do amor – sublinha-se – “resulta claro
que a fé não é intransigente, mas cresce na convivência que respeita o outro. O
crente não é arrogante; ao contrário, a verdade o torna humilde, sabendo que,
mais do que nós a possuirmos, é ela que nos abraça e nos possui. Longe de
enrijecer-nos, a segurança da fé nos coloca a caminho e torna possível o
testemunho e o diálogo com todos” (n. 34). É este o espírito que anima
as palavras que eu lhe escrevo.
A fé, para mim, nasceu do encontro com Jesus. Um
encontro pessoal, que tocou o meu coração e deu uma direção e um sentido novo à
minha existência. Mas ao mesmo tempo um encontro que foi possível graças à
comunidade de fé em que eu vivia e graças aos quais eu encontrei o acesso à
inteligência da Sagrada Escritura, à vida nova que, como água que jorra, brota
de Jesus através dos Sacramentos, à fraternidade com todos e ao serviço dos
pobres, imagem verdadeira do Senhor. Sem a Igreja – acredite-me –, eu não teria
podido encontrar Jesus, consciente de que aquele imenso dom que é a fé é
custodiado nos frágeis vasos de barro da nossa humanidade.
Ora, é precisamente a partir daí, desta
experiência pessoal de fé vivida na Igreja, que eu me sinto à vontade para
ouvir as suas perguntas e para buscar, junto com o senhor, os caminhos ao longo
dos quais possamos, talvez, começar a percorre um trecho de caminho juntos.
Perdoe-me se eu não sigo passo a passo as
argumentações propostas pelo senhor no editorial do dia 7 de julho. Parece-me
mais frutuoso – ou, ao menos, é mais natural para mim – ir de certo modo ao
coração das suas considerações. Não entro nem mesmo na modalidade expositiva
seguida pela Encíclica, em que o senhor entrevê a falta de uma seção dedicada
especificamente à experiência histórica de Jesus de Nazaré.
Observo apenas, para começar, que uma análise
desse tipo não é secundária. Trata-se, de fato, seguindo a lógica que guia o
desdobramento da Encíclica, de fixar a atenção sobre o significado do que Jesus
disse e fez, e, assim, em última instância, sobre o que Jesus foi e é para nós.
As Cartas de Paulo e o Evangelho de João, aos quais é feita referência
particular na Encíclica, são construídos, de fato, sobre o sólido fundamento do
ministério messiânico de Jesus de Nazaré, atingindo seu auge resolutivo na
páscoa de morte e ressurreição.
Portanto, é preciso se confrontar com Jesus, eu
diria, na concretude e na rudeza da sua história, assim como nos é narrado
sobretudo pelo mais antigo dos Evangelho, o de Marcos. Constata-se então que o
“escândalo” que a palavra e a práxis de Jesus provocam em torno dele deriva da
sua extraordinária “autoridade”: uma palavra, esta, atestada desde o Evangelho
de Marcos, mas que não é fácil fazer entender bem em italiano. A palavra grega
é “exousia”, que na carta remete ao que “provém do ser” que se é. Não se trata
de algo exterior ou forçado, mas de algo que emana de dentro e que se impõe por
si só. Jesus, com efeito, impressiona, surpreende, inova a partir – ele
mesmo o diz – da sua relação com Deus, chamado familiarmente
de Abbá, que lhe confere essa “autoridade” para que ele a use em favor dos
homens.
Assim, Jesus prega “como alguém que tem
autoridade”, cura, chama os discípulos a segui-lo, perdoa…coisas todas que, no
Antigo Testamento, são de Deus e somente de Deus. A pergunta que mais vezes
retorna no Evangelho de Marcos: “Quem é este que…?”, e que diz respeito à
identidade de Jesus, nasce da constatação de uma autoridade diferente daquela
do mundo, uma autoridade que não tem como fim exercer um poder sobre os outros,
mas servi-los, dar-lhes liberdade e plenitude de vida. E isso até o ponto de
colocar em perigo a sua própria vida, até experimentar a incompreensão, a
traição, a rejeição, até ser condenado à morte, até desabar no estado de
abandono sobre a cruz. Mas Jesus permanece fiel a Deus, até o fim.
E é precisamente então – como exclama o centurião
romano aos pés da cruz, no Evangelho de Marcos – que Jesus se mostra,
paradoxalmente, como o Filho de Deus! Filho de um Deus que é amor e que quer,
com todo o seu ser, que o ser humano, cada ser humano, se descubra e viva
também ele como seu verdadeiro filho. Isso, para a fé cristã, é certificado
pelo fato de que Jesus ressuscitou: não para triunfar sobre quem o rejeitou,
mas para atestar que o amor de Deus é mais forte do que a morte, o perdão de
Deus é mais forte do que todo o pecado, e que vale a pena gastar a própria
vida, até o fim, para testemunhar esse imenso dom.
A fé cristã acredita nisto: que Jesus é o
Filho de Deus, vindo para dar a sua vida para abrir a todos o caminho do amor.
Por isso, o senhor tem razão, ilustre Dr. Scalfari, quando vê na encarnação do
Filho de Deus o eixo da fé cristã. Tertuliano já escrevia: “Caro cardo
salutis”, a carne (de Cristo) é o eixo da salvação. Porque a encarnação, isto
é, o fato de que o Filho de Deus veio na nossa carne e compartilhou alegrias e dores,
vitórias e derrotas da nossa existência, até o grito da cruz, vivendo todas as
coisas no amor e na fidelidade ao Abbá, testemunha o incrível amor que Deus tem
por cada ser humano, o valor inestimável que lhe reconhece. Cada um de nós, por
isso, é chamado a fazer seu o olhar e a escolha de amor de Jesus, a entrar no
seu modo de ser, de pensar e de agir. Essa é a fé, com todas as expressões que
são descritas pontualmente na Encíclica.
Sempre no editorial do dia 7 de julho, o senhor
me pergunta, além disso, como entender a originalidade da fé cristã, uma vez
que ela se articula justamente na encarnação do Filho de Deus, em relação às
outras fés que gravitam, ao invés disto, em torno da transcendência absoluta de
Deus.
A originalidade, eu diria, está justamente no
fato de que a fé nos faz participar, em Jesus, à relação que Ele tem com Deus
que é Abbá e, nessa luz, à relação que Ele tem com todos os outros seres
humanos, incluindo os inimigos, no sinal do amor. Em outros termos, a filiação
de Jesus, como ela nos é apresentada pela fé cristã, não é revelada para marcar
uma separação intransponível entre Jesus e todos os outros: mas para nos dizer
que, n’Ele, todos somos chamados a ser filhos do único Pai e irmãos entre nós.
A singularidade de Jesus é pela comunicação, não pela exclusão.
Certamente, segue-se também disso – e não é uma
coisa pequena – aquela distinção entre a esfera religiosa e a esfera política
que é sancionada no “dar a Deus o que é de Deus e a César o que é de César”,
afirmada com clareza por Jesus e sobre a qual, laboriosamente, se construiu a
história do Ocidente. A Igreja, de fato, é chamada a semear o fermento e o sal
do Evangelho, isto é, o amor e a misericórdia de Deus que alcançam todos os
seres humanos, apontando para a meta ultraterrena e definitiva do nosso
destino, enquanto à sociedade civil e política cabe a tarefa árdua de articular
e encarnar na justiça e na solidariedade, no direito e na paz, uma vida cada
vez mais humana. Para quem vive a fé cristã, isso não significa fuga do mundo
ou busca de qualquer hegemonia, mas sim serviço ao ser humano, a todo o ser
humano e a todos os seres humanos, a partir das periferias da história e
mantendo desperto o senso da esperança que impulsiona a fazer o bem apesar de
tudo e olhando sempre além.
O senhor me pergunta também, na conclusão do seu
primeiro artigo, o que dizer aos irmãos judeus acerca da promessa feita a eles
por Deus: ela foi totalmente esvaziada? Esta é – acredite-me – uma interrogação
que nos interpela radicalmente, como cristãos, porque, com a ajuda de Deus,
sobretudo a partir do Concílio Vaticano II, redescobrimos que o povo judeu
ainda é, para nós, a raiz santa a partir da qual germinou Jesus. Eu também, na
amizade que cultivei ao longo de todos esses anos com os irmãos judeus na
Argentina, muitas vezes na oração interroguei a Deus, de modo particular quando
a mente ia ao encontro das recordações da terrível experiência do Holocausto.
Aquilo que eu posso lhe dizer, com o apóstolo Paulo, é que nunca falhou a
fidelidade de Deus à aliança feita com Israel e que, através das terríveis
provações desses séculos, os judeus conservaram a sua fé em Deus. E por isso, a
eles, nós nunca seremos suficientemente gratos, como Igreja, mas também como
humanidade. Eles, além disso, justamente perseverando na fé no Deus da aliança,
lembram a todos, também a nós, cristãos, o fato de que estamos sempre à espera,
como peregrinos, do retorno do Senhor e que, portanto, sempre devemos estar
abertos a Ele e nunca nos encastelarmos naquilo que já alcançamos.
Chego, assim, às três perguntas que o senhor me
faz no artigo do dia 7 de agosto. Parece-me que, nas duas primeiras, o que está
no seu coração é entender a atitude da Igreja para com aqueles que não
compartilham a fé em Jesus. Acima de tudo, o senhor me pergunta se o Deus dos
cristãos perdoa quem não crê e não busca a fé. Posto que – e é a coisa
fundamental – a misericórdia de Deus não tem limites se nos dirigimos a Ele com
coração sincero e contrito, a questão para quem não crê em Deus está em
obedecer à própria consciência. O pecado, mesmo para quem não tem fé, existe
quando se vai contra a consciência. Ouvir e obedecer a ela significa, de fato,
decidir-se diante do que é percebido como bom ou como mau. E nessa decisão está
em jogo a bondade ou a maldade do nosso agir.
Em segundo lugar, o senhor me pergunta se o
pensamento segundo o qual não existe nenhum absoluto e, portanto, nem mesmo uma
verdade absoluta, mas apenas uma série de verdades relativas e subjetivas, é um
erro ou um pecado. Para começar, eu não falaria, nem mesmo para quem crê, em
verdade “absoluta”, no sentido de que absoluto é aquilo que é desamarrado,
aquilo que é privado de qualquer relação. Ora, a verdade, segundo a fé crença,
é o amor de Deus por nós em Jesus Cristo. Portanto, a verdade é uma relação!
Tanto é verdade que cada um de nós a capta, a verdade, e a expressa a partir de
si mesmo: da sua história e cultura, da situação em que vive etc. Isso não
significa que a verdade é variável e subjetiva, longe disso. Mas significa que
ela se dá a nós sempre e somente como um caminho e uma vida. Talvez não foi o
próprio Jesus que disse: “Eu sou o caminho, a verdade e a vida”? Em outras
palavras, a verdade, sendo definitivamente uma só com o amor, exige a humildade
e a abertura a ser buscada, acolhida e expressada. Portanto, é preciso
entendermo-nos bem sobre os termos, e, talvez, para sair dos impasses de uma
contraposição… absoluta, refazer profundamente a questão. Penso que isso seja
absolutamente necessário hoje para entabular aquele diálogo sereno e
construtivo que eu esperava no início deste meu dizer.
Na última pergunta, o senhor me questiona se, com o desaparecimento do ser humano sobre a terra, também desaparecerá o pensamento capaz de pensar Deus. Certamente, a grandeza do ser humano está em poder pensar Deus. Isto é, em poder viver uma relação consciente e responsável com Ele. Mas a relação entre duas realidades. Deus – este é o meu pensamento e esta é a minha experiência, mas quantos, ontem e hoje, os compartilham! – não é uma ideia, embora altíssima, fruto do pensamento do ser humano. Deus é Realidade, com “R” maiúsculo. Jesus no-lo revela – e vive a relação com Ele – como um Pai de bondade e misericórdia infinitas. Deus não depende, portanto, do nosso pensamento. Além disso, mesmo quando viesse a acabar a vida do ser humano sobre a terra – e para a fé cristã, em todo caso, este mundo como nós o conhecemos está destinado a desaparecer –, o ser humano não deixará de existir e, de um modo que não sabemos, assim também o universo criado com ele. A Escritura fala de “novos céus e nova terra” e afirma que, no fim, no onde e no quando que está além de nós, mas para o qual, na fé, tendemos com desejo e expectativa, Deus será “tudo em todos”.
Ilustre Dr. Scalfari, concluo assim estas minhas
reflexões, suscitadas por aquilo que o senhor quis me comunicar e me perguntar.
Acolha-as como a resposta tentativa e provisória, mas sincera e confiante, ao
convite que nelas entrevi de fazer um trecho de estrada juntos. A Igreja,
acredite-me, apesar de todas as lentidões, as infidelidades, os erros e os
pecados que pode ter cometido e ainda pode cometer naqueles que a compõem, não
tem outro sentido e fim senão o de viver e testemunhar Jesus: Ele que foi
enviado pelo Abbá “para levar aos pobres o alegre anúncio, para proclamar aos
presos a libertação e aos cegos a recuperação da vista, para libertar os
oprimidos, para proclamar o ano de graça do Senhor” (Lc 4, 18-9).
Com proximidade fraterna,
Francisco
Fonte: Blog Carmadélio